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Alô

Um chinês laico, amigo de um outro chinês espiritualista, telefona a este e pergunta o que lhe aconteceu depois de sair correndo disparado de um outro chinês — menos amistoso —; brevemente o vendo, uma última vez e nessas últimas circunstâncias, antes que desaparecesse por completo no horizonte de alguns quarterões bem acimentados e mais ou menos congestionados dali. Mas prédios, carros, transeuntes, regiões montanhosas; e o ano: 2002; — interessa-nos pouco, salvo do 8 de janeiro em diante.

— Ei! então... quê, que tinha acontecido?

— Me pegaram, Laico... Me pegaram distribuindo panfletos sobre os movimentos...

— Movimentos?...

— Sim. Movimentos.

— Aqueles?

— Sim! A-Aqueles...

— Essa não, Jing! Você já deveria saber ao menos... Está reiteradamente proibido e banido o Falun Gong, talvez desde que passamos a nos oficializar 'laicos'; já nem lembro mais, se é que lembro, ou posso... Enfim; acho melhor você deixar disso.

— Sei, sei; talvez. Mas...

— Parece ofegante... Está aflito ainda?

— Sim.

— Eu imagino... Não é fácil ser preso só por causa de alguns movimentos espiritualmente significantes e inofensivos, de cunho meditativo, e que não estão em acordo ou autorizados antes pelo laico governo do Partido.

— Fosse só...

— Êpa! mas então o que há?

— É que aprendi da pior...

— Desculpe a intromissão; mas não se preocupe, homem! Não se perdera muito, ou quando muito: nada; já que não lhe rasgaram na bala. Depois de saído de lá da detenção, antes é claro que uns trabalhos aqui e acolá colhendo algodão; pratique você os movimentos o mais escondido possível, como se a sua malemolência falungonguíssima dependesse disso..., digo, digo, seu corpo, mente, pernas, braços..., se é que, primeiro, entendo tão bem quanto você dos movimentos à la gongfu.

— Sim, são quase; éee..., perfeitamente. Só... só será mais difícil movê-las tendo amputado os pés, e o pior é que não foi tão limpo quanto seria se me voltassem e fuzilassem só na região do tornozelo...

— Aalô? Ei! alôo?! Cortou-se o áudio.

— Desculpe...

— Ouvindo-me aí, homem?

— Desculpe, Laico...; é que me deram umas bordoadas aqui por lhe tentar contar que perdi em parte as pernas, mas observo que foi senão por decorrência da fuga minha, e que de todo não aconteceria se me tivesse entregado sem lutar àqueles pacíficos policiais.

— Que isso, Jing... Alô!? Ah, cortou-se o áudio de novo. Mas que lhe há, homem?... Desconversando já logo cedo, e por que disso? sou do Partido?

— Ah! da fuga.

— Aalôo?... Mas que-que háa? Já-já me enfado.

— Decorrente... decorrente da fuga.

— Esteve aí uma corriola danada! barulhos como se fossem bofetadas e vozes entrecortadas, incluindo a sua...

— Laico, — atalhou descansado —; você nem imagina...

— As porradas até que imagino e condescendo, não com o esbofeteador senão com o esbofeteado; as mulheres tendem à agressividade quando as ignoramos por muito. Agora, brincadeiras à parte, o que não percebo de todo é se o Falun Gong também além de movimentos ensina a mentir... quanto às pernas..., com tamanha naturalidade partidária.

— É, você... você me pegou, me pegou; venceu. Foi tudo uma brincadeira nossa.

— Sabia! Só alguém com qualidades de o Sol Vermelho manteria a mentira até a morte, quando menos até o término desta conversa nossa, com tanta naturalidade e autoridade sob nome do futuro esperado, por que até prisões como a sua são justificáveis. Cedo ou tarde virá a revolucionária telecomunicação e o ampliado controle total dos meios comunicativos, e já não precisaremos despender tantos sacrifícios...

— Encharcaram meus pés congelados com água quente depois que me tive de jogar naquele rio, naquele frio. Pronto! falei.

— Espere... Alô?

E depois de duas ou mais desconversas temerosas, e de outras duas esperançosas; uma última conversa é quem terminará e as esgotará na totalidade das conversas revolucionárias. Mas antes a sua falta temporária engendrará duas últimas desconversas: uma metida consigo ou ensimesmada; outra mais sob pressão contundente, face a face e socializada, depois que Laico percebe ao telefone a sobeja tentativa e a ausência de resposta. “Alô?”, já é a sexta vez; e nada.