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O Janota

São exatas vinte horas, trinta minutos e três segundos, quando um janota adentra o boteco N*** à porta; o lugar: litoral paranaense. É Paranaguá, Paraná; ou melhor, Av. Gov. Bento Munhoz da Rocha Neto. Agora, aos exatos primeiros dez segundos dos trinta minutos da oitava hora à noite, o vulto fecha e os beberrões enxergam todos impressionados aquele bem-vestido; o que não fecha, antes não o tendo aberto, é o vulto desse; passam-se, porém, mais dez segundos: cinco de assimilação, e outros cinco de conformação, da plateia, cada qual com um copo de pinga à mão, pousado na mesa ou balcão. De todo trajado a preto, esse canastrão tinha sapatos polidos e encerados, camisa social francesa tipo gola alta, estava encoletado, encasacado de um sobretudo de lã poliéster ao estilo britânico, nada despojado e nada assim caríssimo; na botoeira incomum daquele casaco semifechado, uma pequena flor de lírio, menos eterna do que temporal dado ao estado de murches em que se encontrava, com a que parecia sair de um casamento malfadado, isto é, sem a noiva, e sem paletó; na cabeça: boina chata inglesa. Via baixo. A flor era a única minúcia com que se podia apregoar-lhe humildade, mas de espírito, salvo desolação; de resto, aos olhos de todos, dono de o passarinho verde, — gracejo a que preferiria tão logo soubesse como era observado, ‘passarinho dourado’, a fugir do falido sistema fiduciário —, embora cada peça se lhe tivesse custado não menos que a bagatela de cinquenta reais naquelas lojas chinesas e virtuais. O frete: “de grátis”. O ajuste do traje: nenhum; apesar de que, corpulento, a robustez favorecia àquele homem a ausência de quaisquer intervenções certeiras de um alfaiate. Ao demais, os beberrões, então quedos e calados, mentalmente pareciam confluir para uma única resposta e simultânea àquela finesa de pessoa e estranha situação, bradando o seguinte:

 

— Lá vem a cá nós uma rodada completa, doutor?! — perguntaram todos, curiosos; claro que esperançosos porque ali ninguém poderia lembrar quando que alguém lhas agraciara de bom grado com senão malquerença de um avesso a torrados de bar.

 

O bartender, único dissidente de seus clientes, parecia porém assentir com os olhões arregaladões àquele pedido subentendido, a cuja variegação natural da vista pareceu também dissentir e abrir espaço ao verde, cor secundária, símbolo complexo e simples, superior à temporalidade da flor vizinha, e à sua simbologia. Mas o janota, deixando ver ao próprio rosto a luz, enchera a garganta e recuara um pouco, baixando a cabeça. Os beberrões desconfiados, recuaram também de o dizer o mais algo. O janota então pôs-se a alevantar a cabeça de novo, deixando-a ver a luz alaranjada daquela lâmpada velha e fraca; de garganta preenchida se alçava e a enfim proferir:

 

— Estou falido, camaradas... Vim é encher a cara.

 

Uma sentença engraçada à sua maneira absurda, comovente, mas antes de tudo fúnebre, a todos o mais: de morte; perfaziam-se agora trinta segundos. “Quem, agora, poderá nos defender de nossas gargantas secas quando chegar a hora?”, era o pensamento comum na roda. Uns, decepcionados, já outros, admirados; alguns já a decidir por jogá-lo porta afora, pelos fundilhos ao suspensório agarrado; outros por guardá-lo lá dentro, e pagar-lhe a rodada esperançada. O vulto geral era de indecisão; cara ou coroa; o legislativo carecia de uma disposição prudencial. O vulto enternecido e mais condescendido ou comovido, só ganhava aspecto sútil quando o janota lá parado, corpo ereto e braços parelhos a cada ilharga, abaixava a cabeça mais uma vez, como que merencório e vexado, pelo que havia dito de sobressalto. Os beberrões mais corados do que os ébrios de ira intumescidos, discernindo ao demais a flor flácida da botoeira vizinha com o restante do todo, não puderam deixar de dizer emendado ao Cristo, todos juntos:

 

— Felizes os banqueiros falidos, pois deles é e será a pinga amiga.

 

Desta vez até o bartender preferiu assentir com a voz; dito alto, não pôde nesse ínterim desviar o olhar daquele mesmo verde eterno, debuxado vezes mais em cifrões no lugar da pupila. Quem o visse e reparasse a devido, diria que a única coisa que o impedia nas circunstâncias de soltar notas e mais notas cá fora como o prelo elétrico norte-coreano, era a córnea, que lhe tanto servia de domo ou impedimento quanto de falta de energia à República Popular Democrática e às supernotas.

 

Já eram onze horas; e do janota só sobrou a boina chata, que acabou por pousar ao chão encardido do boteco. Outros, como perdessem a batalha contra o coma alcoólico, lá estavam estirados, entupidos por sonhos dionísicos sem saber nada do deus do vinho; iguais àquele que um dia era o estranho. Mas nem sinal do lírio.