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Patacoada

Era 30 de agosto, tive de sair cedo a fazer alguns exames para, obedecendo às normas trabalhistas, poder ser empregado; para lá fui. Próximo àquela escola; tal Colégio Adventista. Encasacado do litoral, como é de meu costume no inverno de cá e em qualquer outra ocasião minimamente plúmbea do verão, a tremedeiras internas que só se fazem perceber no meu gesto dissimulatório de trocar a esfregadeira das mãos ao rosto, que quando não servem à verdadeira sensação não direi a que desconversa, nem que trejeito seja em matéria de tez. Se até santo se enfuna, que dirá de mim então?; porém eis que me impera a discrição. Mas vá lá: friosíssimo; se é suficiente o supletivo romano à expressão e verdade. Não o é — e antes o advérbio adjetivado tem o mesmo efeito —; digo, friosíssimo... naquela manhã de terça-feira, com direito à ventaneira.

Passado ao quarteirão de trás, senhas para o atendimento, não ‘atendimento para senhas’: é a memória inicial do lugar; e com essa a fila, e com esta por causa daquela é meu livreto, meiuca da recordação. É o costume quando se está lotado de gente, tanto a mim quanto aos Recursos Humanos, mas a eles o meio são as redes sociais enquanto já lhes seja propriamente o fim, porque no início é só trabalho mesmo. No meu caso avançara depressa; fui é poupado. Não da leitura porque esta não era deveras entendiante, quisesse antes continuar; mas fui poupado de engordar. Tive de voltar a casa mais apressado do que correria a fila normalmente, — pensei —, por haver esquecido completamente do Documento. A papelada em si estava correta, menos os documentos que legitimam a mim como beneficiado da baita caridade benéfico-empresarial de uma das subsidiárias da China Merchants Group, — porquanto China Merchants Port Holdings —, em pagar-me admissão para que eu pudesse trabalhar-lhes. Lá fui; desta vez voltando.

A causa do esquecimento podia ser pressa minha: terei acordado de sobressaltado sabendo que quisera despertar antes de abrirem tal clínica, — exatas 7 (sete) em que cuja hora também abri as portas dos olhos —; é possível; quem sabe fosse jejum estendido ou consequência de sair de casa sem comer nada, tendo a nutrição não faltado tanto ao corpo, mas em parte ao tino; tanto possível; ou como me aludia vovó quando botei os pés portão adentro tão cedo, ‘trapalhão’; quanto verossímil. Seja lá como for, a verdade é uma; e só Cristo e este papel binário sabem-na. O bom de voltar cá embora, e à clínica ter de voltar mais tarde, foi que, se somente se munido de identificação como que agora estava, pulava-se milagrosamente a burocracia das senhas e de sua espera, muito pelo rápido escasseamento dos concorrentes, pagando em parte, porém, com meu cansaço e com suor até então inéditos dentro do que em pouco pareceria um ajuste fino pelo Destino, mas também muito pela gentileza das atendentes em me reconhecer como o desventurado que esquecera os documentos de há pouco, a não dizer ‘parvo’. Sorte que não vim e voltei rápido demasiado; sorte que não vim e voltei mui relaxado.


— …porta de vidro — dizia-me uma delas; a venta esbelta me prendera mais do que gostaria vejo agora, por cujo motivo só lhe ouvi estas últimas palavrinhas que as ponho aí. Gostaria de tê-las ouvido por inteiro; fosse não suficiente o rosto, — o que não é verdade —, sua voz era amena, deliciosa a ouvidos que suplicam já em poucos ruídos amuantes iguais aos meus.

A porta... Moço, atrás de você — repetiu-mo.


Só lhe ouvi mais algumas outras porque ela antes vira que lhe não havia reagido nas primeiras, salvo os olhos namorados que, vezes involuntários, sinto dizer: nem a mais bela mulher poderá desidratá-los por completo, ela mesma poderá ser a causa em umedecê-los, vezes no triste ou feliz. Fez questão de chamar-me atenção quanto pôde, ao que enfim despertei. Pisquei lá algumas vezes abestalhado, fitando-a por alto; psicólogo é a que deveria ir.

Próximo à porta, chamou-me consultório adentro ainda nos primeiros goles de seu cafezinho, sinto que arruinado pelo copinho plástico e aos sachês de açúcar, quando lhe perguntei se era mesmo o doutor Ray. Era. Ao café, embora supostamente de mercado, “não há nada ruim que não possa piorar”; rifão cujo alerta teria servido a mim, se antes não corresse tudo tão bem, “na medida do possível”, aliás mesma expressão essa com que me perguntaria quanto à minha felicidade mais a pouco, enquanto escorropichava a barulhinhos pela mais miúda remanescência do líquido. Ao que lha responderia ‘sim’; rijo e oficial, não acrescendo um ‘senhor’, — "sim, senhor" —, como não se mo lembrasse no momento a educação. Antes, porém, não se pode fugir à primeira pergunta; nenhum paciente o pode do exame ocupacional psicossocial. A matéria: idade; o meio expressivo: datas; agora, eu, na minha esfogueteação já não podendo mais esquecer igual antanho como quando aos documentos, trocara o natal pelo recente último aniversário: “*** de *** de 2024”, declarei-lhe. Não esquecera; antes sabia até demais, e o conhecimento se me fez embolar.


Está nascendo? — ao que redarguiu-mo; levantava o índice direito, apontava-o para o teto, como quem descobria sua ciência como não sendo ciência igual a que se diz ciência, por exemplo, a ciência da Física, ou antes como se lha dizia a da psicanalítica. — Em que ano você nasceu?

2024 — retornei mais uma.


Rimo-nos quando percebemos, juntos, meu desatino pela segunda e última, pois penso que ele, mesmo que de momento, podia me ter achado maluco, sobretudo agora quando parecia lho reiterar; mas rimo-nos enfim: doutor de a minha patacoada, e eu da sua fineza. Terminado nossos negócios, sobrava-lhe em último a anedota aos filhos ou a quem quer que seja, e a mim a dualidade: desalento do disparate ou alegria do chiste.