— Aqui! — chamava a atenção dalguma buchuda; fora aduzido pelo instinto da obra e pela própria obra a obrar. — Sente-se aqui, senhora.
Chamá-la ‘senhora’ já havia sido um “pisar em falso” por minha parte; mas até aí não haveria problema se as circunstâncias fossem apartadas dos fatos, pois aí teríamos paraísos e não consternações. Meu amigo, que estava contíguo a mim e portanto sentado no banco ao meu lado direito (lado do janelão), tinha também a inscrição no coração da obra, e, quando não era ele o benfeitor, pela obra mesma lhe aprazia agradecer ao longânimo autor, seja lá por qual obra feita, se se respalda no sumo bem estaria ele sempre a favor e pronto a congratular quem fosse.
— Não! — um 'não' forte, viçoso e amuado, que só se não perderia enfim na vexação da proferidora, porque esta antes abrira espaço ao rancor; ela gritou. — Eu não quero sentar!
Muito bem... A recusa daquela mulher foi tanta que fez todos os passageiros voltarem à realidade e perceberem o mais o que se passava — além de seus smartphones em que absortos, rodeados pelo campo de força ruidoso —, depois de me haver negado a honra de a ver assentada e confortável, feliz, no que seria o meu antanho lugar, agora de alguém que lutava por dois, vezes mais por três ou até onde vá e suporte a placenta amiga; ou seja, foram todos é trazidos e puxados do abismo a que foram antes precipitados pela barulhada e o restante de distrações do transporte público, de volta à Mãe do Paraná, são e salvos, mas que por cujo susto desse repentino retorno retroagiram um pouco, a pensar haver ainda moço a cobrar ao cartão vale-transporte. Num lapso, os peguei todos a olhar ao banco acolchoado que hoje só serve à criançada e a deficientes, cansados e desmentidos, voltaram aos seus vídeos curtos; conquanto a batalha permanecesse de igual para igual, eu tinha ao menos escapado de demais sobrolhos diretamente levantados, sobrado apenas aquele que quando muito, franzia pouco, era acompanhado por um olhar oblíquo, quase tímido. A legitimidade havia perdido; motivo pelo qual ela não se decidira pelo barraco; antes de um é preciso ter olhares curiosos externos ao fato, e ociosos por uma algazarra, de modo que as circunstâncias propícias, agora, ajudem a produzir novos fatos, menos gostosos a quem é avesso a controvérsias de quaisquer tipos. Como estava previsto nas estrelas daquele dia ensolarado que acabei por as confundir com aquele teto sujo de pintura descascando (pouco mais de dez pontinhos de ferrugem), o azo que porventura tínhamos conosco a melhorar a situação minha com aquela moça: “deixa-a; nem todos vêm tendo um bom dia”, dito baixinho a mim e apenas a mim, com honesta sinceridade, — e, quem sabe, talvez fosse precisamente o caso —, não obstante não precisasse deveras de algum consolo quanto a algo tão bobo como aquilo, ele, como já estivesse determinado que diria a não dizer (eis o verdadeiro consolo), poderia no máximo ter me dito isso; mas aquele meu amigo foi além, além para mais de mil metros como andássemos um tempão naquele ônibus enfurnados, por cujo bafo pressuponho lhe haver obliterado temporariamente a boa aquiescência em favor do desatino valendo a vida dos outros.
— Não vê? — perguntou-me como se houvesse passado por mim algo ululante; de fato, não o percebi. — Luiz; aquilo é gordura...
Não tive reação de imediato. Na ocasião, meu olhos o miravam, transformados a opacos, atalharam-no de dizer o mais algo; se é que diria mais algum. “Não vê?”; pois via…, via o bastante para enxergar a meu corpo de cima a conjecturar que dali havia partido para melhor, e que como espírito só me restava esquecer o mais rápido o estrangulamento terrestre e subir à pátria celeste, a evitar que, quem sabe, minha algoz me persiga inda na morte, tirando-se a vida com o martelo de emergência. Confesso: esse desconcerto todo foi mais desatino do que aquele feito pelo amigo; mas que serve ao poeta, como descontração. Chegando à hipérbole ou não, sorte nossa, também quanto a todos os envolvidos passageiros e colegas de espaço em não presenciarem, novamente tolhidos de arrastarem para cima a tela de seus smartphones, o que por ali parecia desembocar na indiscrição dele sucedida de óbito meu, porquanto que ela decerto pensara em mim ao ouvir ‘gordura’ em vez de ‘neném’, isto é, por dela estar mais próximo eu —; felizmente ninguém ali ouvira aquele infeliz comentário, nem mesmo a ventruda.
Vimo-la descer no mesmo ponto em que também descemos, ela primeiro e depois nós dois; já hoje nem sinal desde que despareceu pela Alameda Coronel Elyzio Pereira, enquanto enveredávamos pela rua dos Expedicionários ao Hotel Camboa.
Andar de ônibus é uma maravilha. A conclusão: em casos assim, quando me rende uma anotação aqui e ali por que não o seria? Ao demais, a Grávida de Taubaté a invejaria; mas uma inveja amiga.