Tendo passado o primeiro legítimo dia e mais outros conseguintes a este, sendo hoje minha folga e nem a primeira delas —, acho-me habilitado a discorrer sobre que vi, ouvi e toquei.
Apesar de a demora por causa da falha comunicativa entre mim e os responsáveis pelo meu setor, ou Anderson, — o “chefão”, como lhe chamara treinador meu —; demora por que fiquei a esperar entre uma hora ou duas para então poder começar; tive a oportunidade a que terei muitas vezes dos meus cinco dias antes da minha folga, de pegar o ônibus rumo ao equivalente Q.G. policial: faltando a autoridade que, federais, preferiam ficar próximo à recepção e prédio administrativo do que conosco do operacional “mãos à massa”, embora sobrando o que parecia stockbroking lá no que parecia um homebroker, lá dentro do prédio operacional e em telões televisionados, mostrando respectivamente contêineres e sua numeração identificadora quais ações e seu market share à precificação. O máximo que tínhamos de administração. Quanto a esses assuntos numéricos separados sutilmente do referente seco ou frio por monitor, teclado e rato, por ora o responsável: dispatcher; supervisionado, é claro, por Anderson, mas antes, que por sua vez supervisionado aí sim diretamente por Anderson, pelo que eles lá do trabalho chamam “líder”. Espécie de sargento; varia mais do que um general ou capitão, ou do que um CEO., antes varia mais do que um encarregado diretamente por algum setor tal como esse Anderson.
— Esse é o supply e o return — mencionava-me incumbido de me treinar e adaptar-me ao serviço, apontando-me com o dedo as respetivas grandezas. — Devem obedecer ao setpoint, meta termoestática, podendo, para isso, se permitir uma diferença de no máximo dez graus e três graus respectivamente.
— És o técnico — tornava-lhe, ironicamente, com fundo verdadeiro; não o era senão igual a mim em cargo e obrigações, mas que entendia o que estava fazendo perfeitamente bem, já tido passado um ano fazendo as mesmas coisas repetidamente.
Não dizia ele igualmente assim; usava menos palavras, vezes embolavam-se, e sempre poucas e todas conhecidas, em simples períodos —, mas que, enfim, dariam nestas por mim empregadas, com estilo e brevidade pessoal.
Eis a falta para com o real da que não posso fugir. Ao menos não uso onomatopeia a dar supostamente claro o bastante ao leitor o que ouvíamos ao passo que seguíamos entre a monitoração e ensinamentos: quase que turbinas de avião; eram vários ventiladores ligados ao mesmo tempo, o som simultâneo se fazia parecer portador em sua conjura de outros mais altos ainda, cada qual individualmente por excelência. Pior era quando vinha o transtêiner; veículo imenso, motor robusto, que por si já fazia ostensivo barulho —, um guindaste de pátio portuário responsável pela manipulação interna de contêineres previamente trazidos por caminhões de pátio, com ajuda antes e fundamental dos portêineres em tirá-los dos navios e lhos botar à garupa. Maior parte funcionando a partir do princípio do motor à explosão, não que os contêineres refrigerados ligados na eletricidade percam em potência ruidosa, tampouco destarte os componentes daqueles outros quais alarmes, buzinas e luzinhas de alerta ruidosas; mas pense nisso, simultaneamente, funcionando... Um dia, quem sabe, com a forte expansão desse meu empregador de agora, possa futuramente ouvi-lo e, empregado ou não, o que lá anda aprontando, do conforto da minha casa e canapé, à medida que caia o conforto e suba o oposto.
Depois de aquele elogio aparente, rira num gracejo sem graça, deixando-se ir a trabalho, monitorando os contêineres refrigerados, dizendo — “exato” — para tudo que eu asseverava de correto, enquanto acenava com a cabeça ‘sim’, uma vez rápida, de cima abaixo. Às vezes referia-lhe asneira; ele não tinha como resposta a isso o antônimo da confirmação costumeira salvo um parecido e unívoco: ‘não’, dito isolado, junto do movimento de cabeça análogo. Usava, contumaz, mais a palavra ao trejeito, tanto a confirmações e dissensões; porém: “exato & exato”, — sua marca e catacrese. Bom professor: bom com números, rápido, experiente e, sobretudo, instrutor: explicava, repetia e repetia. Acaso fosse mais lerdo e distraído, talvez enfunar-se-ia por mim, como pouco enfadado ele ria de um colega com um transtorno de atenção explícito, — assim concluo do que diziam desse —, pausadamente, mas fazendo-o ao passo que obsequiava internamente em reverso, ansiando-lhe que, cooperasse a natureza, fizesse o certo e não errado, a cessar indiferentemente quanto antes o humor. Por isso o fazia sutil; ainda assim pausadamente; dois risos lépidos concluídos no sorriso semialvo, um canto da boca ia enquanto outro permanecia, e logo tudo desfeito na seriedade. Era moreno e parecia ser indiano; era crente mas que “saí dessa vida”, dizia. Nada de Buda ou Alá; “oxalá nem de Cristo”, imagino seja como acrescentaria a minha descrição sua, e a etimologia confessaria por ele, e o sínolo, linguagem e realidade, julgá-lo-ia.
A dificuldade suponha até agora estar nas posições, localidades, e seus respetivos termos designatórios; tudo estava dividido em blocos, subdivididos em pilhas, módulos, ruas e altura, expressos em letras e números.
— Aqui está — ensinava-me, com base no primeiro, os lugares com “grandes geladeiras”, através do braço esticado, índice apontado —: bloco ‘C02’, logo ali será ‘C03’, ‘C04’ e assim por diante. Salvo, não temos o ‘C01’.
Lia-se “C2” (cê dois), embora transcrevessem-no ‘C02’, ao que o sistema os via diametralmente destoantes as duas opções; e aos outros igualmente por sua vez assim se dava. Não digo mal do sistema: o sistema era bom; geralmente, quando se errava, tendia ele intervir antes que se findasse em estrecesse a desgraceira, impedindo seu começo.
Exigia-nos, naturalmente, uma prática espacial, a cuja proficiência, segundo ele, só se ganhava com “tempo e repetição”. Supunha já ali que erros também acrescentavam à sua maneira avessa: “ninguém só repete o certo”, pensava enquanto ele ia indicando, dizendo e desdizendo, o que fazer e o que não; foi que usei para manter o tino diante de tanta informação soltada, assim, uma atrás doutra.
— O setpoint é o mais importante... Se o return e o supply seguem-no, é bom ficar de olhos abertos antes ao setpoint e, qualquer diferença do físico para o que temos no sistema deste ou daquele reefer, imediatamente assinalar “setpoint divergente”, e mandar o que se avista no maquinário do contêiner. Para isso serve o coletor.
— Tá bom — ao que já o passava a imitar, a meu modo, enquanto conciliava a vista entre os números do maquinário visíveis através de um ecrã digital, e entre aqueles cujo que parecia um celular a desvelar-nos.
Ele puxou o coletor, e foi-se indo a monitorar, parando e ensinando mais um pouco; o que ensinara, deixava estar e ia imaginativo a outro que ainda não, e testava-me na prática daquele antes.
— Sua vez — dizia-me.
Mal sabia que teria que repetir tudo de novo no dia seguinte, e no próximo e no próximo, ao que até hoje quase mo repete a maior parte. Às vezes, quando não falava, o que não era raro salvo só quando precisasse — no rádio; que ganhamos justamente para se nos comunicarmos, porquanto equipes em que éramos todos divididos: equipe ‘A’, a nossa —, ou quando mandasse naturalmente o encargo de instruir-me no certo em detrimento do erro; seja lá que for, às vezes apenas continha a língua, também o passo, o que era raro, enquanto fitava o coletor, como que apreensivo e com enfado, batendo levemente os pés no chão, compassado, destarte estapeando o coletor com uma das mãos.
— O que é ruim é ter que esperar.
— Ah, se é... — confirmava; via-o bater da ilharga direita o coletor na mão direita, em sua lateral plastificada.
Ele, ao confirmar, pensava no ponto da fraca telefonia móvel 4G (o real "problema do sistema”), cuja ausência de conectividade suficiente prejudicava vezes o aparelho e suas funções, e o nosso trabalho consequentemente; já eu pensava apenas na hora de ir embora. Não via hora (relógio deixara em casa; celulares, dentro do pátio, aos auxiliares reefers, estão fora de questão), mas via aquele sol que não caía, favorecendo a opinião do treinador que dali viria, ao passo que se me aumentava a ânsia.
— Pior é o calor — comentou-me; e lá se fomos a subir mais escadas.
Depois de um ano suponho que quem pedirá arrego será os joelhos, e já não minha acostumada e morena venta.