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Literatura

Quando Gurgel diz que a literatura é “vida concentrada” ele não poderia ser mais sintético e verdadeiro.

A literatura é lar do que se passa, passou e passaria no interior de cada um de nós; lar dos mais problemas imagináveis, reimaginados e postos em histórias que levam o nome ‘verossímeis’. Contadas assim, como possíveis; de modo que cada um que as leia, ou mesmo escute outrem a lê-las, tira para si na forma de lucro a partir do empréstimo de tais e quais experiências sob a figura de personagens, a sua própria, nova, vaga, e ora aprofundada pelo ato mesmo e adjacente de se nos olharmos a si mesmos e compará-la com o que somos e faltamos.

É lar de Rodion Raskolnikov, assassino; mata uma velhinha usurária e que, para isso se dizendo superior às leis, tal qual outros excelentes homens —, usaria o seu dinheiro roubado para um bem maior, cujo benefício posterior desculparia a raiz controversa desse “bem”. Bem maior que é ele mesmo, Rodion Raskolnikov, também universitário, ou melhor “ex-estudante”, e que cujo futuro, segundo ele mesmo, é promissor o bastante a se achar provável benfeitor da humanidade, se usar o dinheiro para financiar-se. Não poderia estar mais biruta o jovem. No fim, com o dinheiro à mão, e o remorso  impingindo-lhe escrúpulos, resolve por enterrá-lo e ficar com raiva de si mesmo, raiva por não pertencer assim à sua teoria — que se não a mostro toda ao menos debuxo-a —, percebendo que aqueles em que se inspirava outrora e aspirava semelhança não precipitariam ante oportunidade como aquela, conferindo a ele algo como “ordinário” e nada “extraordinário” daqueles, na ideia do rapaz: duas naturezas opostas em que a mais nobre e última confere uma espécie de aval moral para as mais ruindades se o pensamento estiver na bonança.

Quantos não levaram a cabo e padeceram tantos outros por crerem cegamente numa quimera? não na verdade, mas na sua falsa sensação? Só os comunistas no século passado um centenário de óbitos. Mas, e nós; não menos suscetivos a pecar?... Já fizemos alguma besteira pelo que acreditávamos ser verdadeiro? pelo que acreditávamos ser parte mesma da estrutura da realidade?

É lar também de Camilo, um rapaz bem fogoso, o bastante para trair o melhor amigo ao adulterar-lhe várias e várias vezes a esposa, às furtadelas. Rita que é concupiscente com a prática, mas teme que por esse relacionamento extraconjugal o seu namorado pare de lhe encontrar por algum motivo avesso ao hábito, procura uma cartomante para ouvir obviamente aquilo que mais quer ouvir, que aquele a ama e jamais a deixará, e de fato o ouve. Mas Camilo continua a receber cartas, cartas que denunciam o que anda a fazer com Rita, cartas que são o motivo pelo qual o levou a ser cauteloso correlação à sua presença junto dela e à casa de seu esposo, seu melhor amigo. Em vez de parar, respirar e abandonar mal da terra e a namorada, resolve por junto à sua expectação buscar falsas esperanças naquela mesma cartomante, e de fato recebe uma resposta reconfortante qual ao que recebera Rita mais antes. Mas só tragédia espera a quem tenta validar os seus evidentes erros como aquilo que dará certo e se erigirá como acerto, sobretudo quando falamos do que é bom e ruim.    

Quem não é como Camilo ou terá sido? que justifica os seus vícios, seu mau comportamento, sua tirania, através de palavras bonitas mas vazias, através da vã esperança fornecida pelo ocultismo ou qualquer das coisas que se nos assemelha amiga que não só não nos diz que estamos errados quando de fato estamos mas nos incentivando, para continuar aquilo que se vem perpetrando sem ter escrúpulos batendo à porta toda vez em que o fizer?

Ler literatura é observar do alto essas figuras já presentes ao nosso redor no que chamamos ‘realidade’, mas que não estão ainda sublinhadas ao nosso intelecto. É conhecer um pedaço da vicissitude da vida compelida através da técnica da escrita, que se a concentra também a aprofunda, separando-a dessa multiplicidade que é a vida humana e seus infindáveis problemas e questões morais, para pô-la aos nossos olhos e cabeça de uma maneira um tanto distinguível. Às vezes antes tarde do que nunca, podemos chegar à conclusão de que somos nós a figura lida.

Vida concentrada... Não é à toa.