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O Day Trader

Existiu um rapazote, carioca, pouco menos de varão, por motivo que não o chamo 'rapazão', pois faltava-lhe velharia sem senilidade, e força física sem esteroides. Desde moleque, tentara ganhar a vida honestamente, certinho, dentro da legalidade; quando não, infrações leves como aquelas que não há vítimas senão aquele que comete a infração, ou aquelas vezes em que moralmente é contundente ao infrator tão somente. Não estudava, quando sim, daquele "jeitinho brasileiro", pouco menos do pouco menos, e quando muito não o suficiente. Legislo, não estudava; estudar é difícil, leva tempo, concentração, silêncio e solidão, e é claro que nos cinquenta minutos da chamada “aula”, não havia nenhum dos quatro. Quando ao trabalho passara, trabalhava bem; chegava na hora, quase antes do gerente; carregava; entregava; descarregava; contava; e de que quebra, auxiliar de mesa que era, sonegava. Tudo num só, num só um balaio; o patrão é que agradecia, tanto mais a parte da "restituição de verdade", assim referia da sonegação cujo oposto, elisão fiscal, preferia ouvir aos funcionários. A verdade é que, antes, não tinha se dado bem no mundo dos cifrões, salvo naqueles representados através dos computadores e da linguagem binária ornamentada, renderizada; lá, ora-ora, tinha até casa própria, sua e de mais ninguém, senão do criador, cuja administração do mundo, para além das inferiores fronteiras do real, fazia como quem imita, para Platão, do que aquele quem fabrica segundo a ideia, para Platão. Bom ou não, tinha diversão enquanto supostamente trabalho, já que moedas no jogo, embora escassas e difíceis de se conseguir, podiam pagá-lo tanto se as ajuntasse, trocando-as por reais. Antecipo, fracassou em tudo quanto é coisa disso; internet, computadores e MMORPGs. Tentou marquetagem; publicidade e vendas online; tráfego orgânico e afiliação comissionada; dropshipping; fracassou, fracassou e fracassou; e foram tantos outros — tal como quando havia querido até ser youtuber fitness, e streamer de games, ao consumir todo o seu tempo livre jogando com em média zero pessoas lhe olhando, não tendo tempo para malhar a não ser usar os esteroides à toa —, que a dor é tamanha que não me quis compartilhar, assim, detalhadamente, nem mesmo tal como as que ponho aqui, esses outros traumas mais antigos, à maneira de meras citações. (Presumo que sua inibição inicial seja para não tão depressa rememorar através da semelhança quão grande foi, quando aparentemente havia tido até então sucesso, aquela perda do fracasso, grande o suficiente para fazê-lo repensar antes de ma revelar, assinando: "eu nunca tinha visto aquilo antes"). Não obstante não haja dor capaz de impedir alguém de se expressar desta maneira, agora, da metade para o fim, com que me conta a sua história; ao menos uma vez entre os acessos, excertos entre os capítulos, a aumentar cada vez mais a quantidade de comentários acerca. Seu nome, Carlos, Carlos da Silva Ramires; carinhosamente conhecido como Carlinhos e... É engraçado; sempre que nas vezes leio ou digo tal nome, vem-me outrem, como se houvessem dois, um e dois, automaticamente dois referentes, cuja analogia entre um e outro é apontada, segundo a mais simples astrologia, pelas disposições dos astros no momento de nascer; é possível, presumo, que exista outro por aí, parecido, similar, análogo, porque enfim traduzo esta minha suspeita na frase que não me deixa a memória: “um não foi achado, o outro não se achou”. Bom, verdade, e verdade mesma, é que a partir de uma época entre quais épocas o que não parou de fazer e em que alcançou inquestionável sucesso e prestígio, foi perder dinheiro: até então não perdia, e também nada ganhava; porém dos pesares, lá chegaremos em tempo hábil quando a habilidade favorecer, confie, pois, no escritor, sem pressa leia e releia. Apesar de que sim, já é há muito dado a hora de lá ver mesmo, aos poucos como mencionado, aquela certa perda de quando pensou bem suceder, mas aos poucos e devagarinho para não assustar o perdedor; muito já se esperou, para falar a verdade, e é para isto que estou aqui: fazer desejos compelidos em poucas palavras incontestáveis, uma realidade, sobretudo à solene pedido.  

Varão; já um rapazão e desiludido com o que lhe diziam dever praticar alguns de qualificação para tal um tanto duvidosa, — coachs do YouTube —, começou por tomar outro rumo: espécime de autodidatismo; empregara-se as rédeas da vida e os corcéis guiara à própria escolha profissional. Lá chegado, cocheiro e único passageiro, desbarretado, girou-se, perfilou-se, e pôs-se a abrir-se as portas da carruagem à especulação convicto a apostar, a chutar; nada de mais, — coisa boba —, uns "joguinhos" aqui, por demais simplórios que parecessem, — não o eram —, como que sobe e desce, lateraliza — como dizem os especialistas —, para, torna a mexer-se similarmente como dantes, e umas emoções aqui e outro sentimentalismo ali, tão logo, para infelicidade de muitos e para felicidade de poucos, mergulha ou busca topo. É uma franca patuscada mercadológica, tanto otimista quanto pessimista, mas, "quando o pó tá na mesa", alavancada; tímida enquanto durar a nossa ingenuidade, feroz quando, à força, tirar-nos a virgindade, e a dignidade é o cadinho que, se porventura sobrar, nos fará lembrar de nunca mais apostar, apesar de lá, mais uma vez, estarmos, insolventes, pelo prazer de pouco ganhar, dando lebre por gato, ouro por chumbo. Não preciso dizer que não teve sucesso, né? Retórico, bem sei; mas hei de formalizar para que não haja dúvidas como quando as incitei à minha habilidade, ao lá irmos lentamente, — à perda —, e cá estamos: adiantados. (Ainda, toda essa verborragia minha já é demasiado sugestivo aos apressados de plantão, mas eis uma verdade também: “se uns e outros contos são medíocres, é serem curtos”, já dizia aquele que queimava cartas em busca da inspiração; além disso, é que não conto somente um verossímil como aqueles ficcionistas, mas um que se encontra acima da possibilidade do real quais fatos... documentação dos fatos: ei-lo que faço). Não; não teve sucesso. Teve senão, como dantes, o sucesso do fracasso. Já as estatísticas concluíam a dificuldade em se ganhar, já opiniões negativas fortaleciam esta conclusão de que nove décimos de infelizes perdiam dinheiro, enquanto que o restante efetivamente ganhava alguma coisa; se é verdade que para sua mudança de mentalidade Calinhos passara a desconsiderar opiniões negativas e redundantemente enganosas, que um dia lhe fizeram de palhaço, passava agora a ignorar aquelas que eram porém verdade. Quando descobriu a alavancagem algo adormecido dentro de si despertara, canalizando a razão e sua retidão para as incertezas da paixão; ganhava algumas vezes, e perdia muito mais, o vício veio-lhe logo em seguida, a trazer-lhe à memória a repetibilidade do regaço quando ganhava, por uma necessidade falsa: “é o único jeito de recuperar”, justificava. Perdeu uma vez, perdeu duas, seguiu perdendo, até que não houvesse mais nada a que se perder.

Vivia num esgoto a céu aberto e curiosamente saneado, cujo alguns dos moradores já há muito pararam de se preocupar só com tratamento de esgoto e asfaltamento, ou melhor, com tudo que não fosse para seu consumo imediato e rápida absorção, para que então consumam mais, e mais; antes, preocupavam-se muito com proteção, paz e sossego, viesse de onde viesse o fornecimento. Agora era só curtição e exaltar as presentes condições, fossem quais fossem. Nessas circunstâncias de anomia, viu uma oportunidade grande e honesta, ora, justa, ora imoral, e acatou como quem acredita o eleitor democrático de direito nas mesmas melhorias, prometidas vinte anos atrás, agora, vinte anos depois. E o melhor de tudo: ainda digital, o que gostava, com que estava acostumado; sair dali seria consequência, tirar a mãe dali tanto mais. Antes não tentasse é que perderia, ao que pensara. Em contrapartida, tinha tido a chance de ser realmente ruim se quisesse. Tinha tido a chance se antes optado houvesse pela sacanagem, malandragem, dar-se bem como tão bem está, por exemplo, o pulha que fatidicamente lhe roubara o celular, bicho solto e com, pós assalto, mais uma excrescência consigo, uma no bolso e de baixo relevo, quase que imperceptível, a outra suspendida na altura da cintura, enferrujada, mas que se mostrou capaz das exigências; empresa que, tanto quanto não dá certo, recompensa e largo, a ser um começo relativamente fácil no crime, sendo furto e vizinho mais seguro e técnico. Em geral, dinheiro e penalidade quase zero é garantido e não é coisa fantástica, já o reverso, embora improvável, é também verdade, onde a maior pena é dada e executada pela população fustigada e aborrecida, se esta chegar primeiro no bandido do que a polícia. Hoje em dia, em menor escala ainda. Para tanto, inclui-se aqui mais aquele que controla sob o terror um pedaço do Estado; mas não por motivos de opressão salvo ofensa grave ao seu poder, que não pode levar afronta, cuja desforra deve-se dar imediatamente a partir de uma pena à altura de sua magnificência a que o detém; também para ganhar alguma pouca confiança com o morador, o que nunca foi difícil. Confiança na base do medo e do terror. Eis uma maravilha da ordem e disposição social! “sucesso de segurança pública”, diria qualquer ministro da defensoria mesmo que os fatos sejam contrários à sua lábia política. Em geral, não sei quem é pior; o tecnocrata ou populista? Tal como dizia o Filósofo da Virgínia ao ouvir em alto e bom som o nome 'José Geraldo Vieira': "coisa de pirar da cabeça", concluía; é que concluo na mesma linha. Tinha lá, perto a casa, uma turba de desalmados, facínoras dos mais variados, farsantes e enganadores, latrocidas, traficantes, e, daqui a pouco, só moradores, como quem mora nos arredores mais abastados: aparentemente, só moradores. E se maus não fossem quais aqueles outros tipos de moradores imediatamente maus, veja só, eram espécime de cúmplices. Não por voluntarismo e nem ponho o discurso acerca como categórico, só que oprimidos e extremamente úteis, além de escravos de si mesmos e, ainda por cima, de outros iguais a despeito de bem munidos dos mais meios escravistas, e como fossem cominados ou cooptados como o foram, são e vem sendo deveras: "é idiota de mais para perceber que é útil", na definição do idiota útil; logo não percebem que são cúmplice por força da obrigação e do hábito, tanto civilmente quanto do mais novo cível do Estado alternativo em que por infelicidade iam passando a viver terminada a década de setenta até aqui. Não incito ódio, não incito pena ou sentença, de maneira alguma; não sou eu quem decidirá, e nem mesmo vejo tal culpabilidade como criminosa ou imoral senão objeto de sincera tristeza nossa e nota de reflexão pesarosa por assim ser e de outro modo não. Também eu já fui cúmplice; sabendo que o era, venci a maré da ignorância a braçadas, assentando enfim na ilha da opressão e do martírio, quedo e silenciosamente, com a vista aguda e ouvido fino. Dado minha preocupação, fica fácil de se pensar tudo haver que se possa imaginar naquela cloaca concretada, acimentada, sobretudo a inter-relação das circunstâncias que a fazem ser o que é, salvo, não ter alguém com a sensação de culpa mínima, — mea culpa —, aquela boa que, mesmo infundada, cria consciência do peso da realidade e responsabilidade pela instante mudança de vida. Todo mundo parecia ter a consciência limpíssima, sem pecado, como se dissera uma vez um dos nossos presidentes da República, embora não o dissesse explicitamente nas ulteriores vezes em que fora também presidente da República, ainda o sugeriria e muito; se não ingênuos, esquivos e zombeteiros, pareciam felizes com seus estados degradantes, levados a encontrar normalidade onde não há, tolhidos pela aparente sina que tinham de qualquer reflexão de si mesmos, e de seu em torno, embora pensassem neles com certa regularidade, ou a partir de uma visão, na melhor das hipóteses, paroquial, ou, na pior, do próprio umbigo. Estavam todos amedrontados, é verdade; prontos a se agarrar a qualquer oportunidade que surgisse, quando o assunto é dinheiro e saúde, embora vezes mais esquecessem destes seus valores superiores e fundamentais por pão e circo, para lembrar-lhes quando se devia tê-los prontos e acabados. Acostumados da mordaça e indignidade porque jamais tiveram a experiência do contrário, determinados a trocar-lhe o fantasma se porventura ganhassem um poder de compra maior, empreguinho ou posição cumeada no governo; invertendo-se a posição, mantendo o sistema intocável. Incautos da liberdade, é verdade. Perfeitos ou quase quando inquiridos a respeito, indiferentes; quando não se distraíssem o suficiente para obsequiarem seus smartphones a responder simples perguntas para cuja atenção requerida é mínima. Esses aí até que são novos em maior parte, reflexo piorado de seus pais; envelheceram, os pais foram morrendo ou se aposentando da liderança avessa aos sinais da senilidade, e já são hoje a geração dominante e vigente. Há de se observar que não se enxerga ou espera honestidade de consciência ou inteligência, escrúpulos, moralidade, pudor ou algum senso de justa-medida ao ambiente citado e similares, através da ação do tempo, e nem mesmo às demais localidades do vasto Brasil varonil... pueril..., por parte minha, que diante das mais evidências me configuro cético: advogado, jornalista e, sobretudo, observador, a quem confiaram a triste história desse Carlinhos aí, igualmente oprimido e, ainda por cima, culpado por sua opressão, embora estivesse caminhando a criar raízes de alguma consciência de sua situação, não se deixando cair vencido pela realidade, que é quase invicta se não fossem por uns valorosos de vez em quando. Infelizmente, esquecera em algum momento das bem-aventuranças, e o paradigma de sucesso do mundão bateu-lhe a porta à têmpora; o knockout só veio depois.

Quando ele teve de contar à mãe..., não foi legal quanto dolorido. Cresceu-lhe o olho. Perdeu na má sorte tudo que havia conquistado junto à irmã vizinha, e mais aquilo que lhe servira de base. Há de ver que a mãe o sustentava enquanto fazia suas peripécias, tanto nas provisões básicas, indefinidamente, quanto no Trading, uma vez e no início; ela, em seu maior estado de uma mãe que apoia com ardor sua cria, tinha dado algum dinheiro a ele para iniciar no que ele chamou “futuro”. Insisto em ressaltar a dor dele ante a mãe, porque, veja bem, antes não saber com exatidão o que se perdera, agora, saber perfeitamente exato, e tê-lo de contar olhando naqueles olhos capazes de fazer qualquer maledicente cessar as ofensas e abraçar a cordura..., isto... isto é outra história..., uma maior e bonita, embora pesarosa. Como de praxe, havia estudado muito pouco, lido muito pouco, experimentado muito pouco; ficado eufórico muito depressa, entusiasmado com aqueles ganhos astronômicos que ascendiam quase que exponencialmente na tela de seu computador; ficado ansioso pelo potencial enorme à que pudesse chegar; mas, usado mais que aquela módica porção, amuada, recebida altruistamente, e aquela recebida naturalmente pelo emprego da primeira, posto alavancasse isto em muitas vezes, veio tudo pelos ares em um único erro que, até então parecia como os outros já em que incorridos, logo se lhe mostrava eliminatório, e a cédulas caíram nas mãos daquele de posição contrária à venda a descoberto feita. Margem liquidada. Ilustra e abstratamente saber que de um tanto 'x', Carlinhos fez um grande 'y', e que agora não passavam de um mais baixo 'z', que é: zero; tanto mais baixo que 'y' quanto de 'x'. Isso... isso é de enlouquecer o cocuruto, de... de incitar a morte: levar ao vale do suicídio como que em um tobogã à piscina de um parque aquático, a muitos de cabeça fraca. Descendo a domínios eternos e malignos, onde o mal habita, gradativamente, por escolha deliberada. Pensara não haver mais futuro dali; pensara estar morto, porque gostaria que realmente estivesse. Pusilânime, vezes mais pedia a Deus que o levasse do sopro da existência. Na mais idade, readaptado à vida, e às suas traições —, metera-se a trabalhar dobrado e de verdade, com expressivo pensamento de que, "com esforço e dedicação", reataria a perda de milhares. Aí, nessa época, é que se encontrava, como já o disse, além de empregado sob contrato regido pelas normas trabalhistas, — durante muito havia estado oficialmente desempregado —, a carregar, a entregar, a descarregar, a contar, etc., etc. Tirando a parte da contribuição compulsória na evasão fiscal da que não sabia, a mãe é que gostava, e muitíssimo, — via-o ocupado e saudável —, porém não nutria esperanças do retorno financeiro desde aquela vez em que ele lhe contara do incidente e, bem após informar-lho, não aguentando-se a soluços o rapaz, retirou-se a passo miúdo e dissimulado a poucas lágrimas invisas, trancando-se no banheiro, onde verteu verdadeiro líquido; lado de fora e assomada à porta, encostando a orelhinha esquerda, era donde ela, timidamente, escutava tudo ao filho. Aquilo tinha sido forte, forte o bastante para que a dona não fecundasse alguma esperança em seu âmago; não o via, mas a imagem que os rumores pintavam dali de dentro não lhe poupavam em detalhes imaginativos. Mas que importa? “nesta vida tudo vem, tudo vai”, pensava. Já Carlinhos, adultíssimo como que era, e criancinha na última quarta parte da cabeça, mantinha-se deveras esperançoso e instava por milagres; a mãe disse-me uma vez que era o que o mantinha vivo, esse espírito jovial e sua conservação, por cuja ingenuidade resultante têm as criancinhas conhecer e amar a realidade e mundo como num mapa para aventuras e novas descobertas, como também têm os filósofos, crianças grandes e sérias. Todavia, penso diferente quando soube que, a partir do próprio Carlinhos, não fora a ilusão dos objetivos destruídos, ou a vã esperança de reavê-los harmoniosos e restituídos, sanados e reajustados por força do destino, assim, ingenuamente; acreditava sim em milagres, mas conscientemente, tendo Deus como centro deles e deixados à Sua e única vontade, e o propósito que fizesse seria comprometimento adjacente através do empenho que despendesse por eles. Quanto a isto, “Deus me recompensará”, pensava. Por outro lado, afirmo que foi a mãe, a mãe que tanto amava, por quem, junto também de sua própria e exclusiva vaidade de paralta, tanto sonhara alto, em se tornar enfim o ricaço do pedaço, e tão logo pudesse carregá-las e suas coisas para fora dali o faria sem pensar muito —, que acrescento que era a mãe quem o fez valorizar novamente a vida que possuía. A mãe. Além do temor a Deus e medo da Danação, por essa mulher é que se manteve bem vívido e respirando.

A mãe fora funcionária do município por alguns anos, em termos contratuais simples e não por concurso público; teve direito, quando expirou o contrato, a um dinheirão chamado por ela 'indenização', incumbindo um advogado muito bem comissionado a cuidar do assunto e de seus trâmites. Não só o caso dela tinha em mãos o advogado trabalhista, mas os de seus ex-colegas também, por quem a dona e mãe de Carlinhos soubera do doutor Paulo. Aquele doutor Paulo. Todos, por uma concessão geral de todos eles, foram colocados num mesmo caso ao azafamado advogado, pelo próprio advogado, poço de persuasão e charme. O porquê da indenização fica para nunca, já que não leva importância o bastante na história salvo dispersar o olhar atento e ávido a circunstâncias indesejadas numa biografia deste tipo, que se pretende ser sucinta, coerente e, mormente, veríssima. O mesmo serve parcialmente ao excelentíssimo doutor Paulo, que não se desconhece nem a retina. Reuniram-se pois em pró de um objetivo comum e mútuo, como fazem os sindicalistas; cá, porém, continua-se o trabalho daqueles que fazem parte do bando que conclama justiça, já no sindicato, estes usam bandos e pessoas como a mãe de Carlinhos e companhia cada qual limitada para não trabalhar, desde o início, enquanto a lei permitir. Melhor coisa não tem! e dessa simbiose subsistem. Aconteceram, é claro, problemas evidentemente nada correlacionados à sindicato ou sindicalistas, dado um certo evento adverso e inesperado: tão logo recebera a boa notícia como chegara-lhe a má, e daí então só ficou a mãe de Carlinhos a imaginar o que seria aquele saldo atualizado na sua conta bancária, instando por vê-lo em ato a esperá-lo só em potência ou promessa, porém é também verdadeiro que nunca falha a máxima, "o que é potência não é necessariamente ato"; tudo que tinha, tudo que, por direito, teria recebido do município, fora-lhe surrupiado após um aviso de boa-fé, "estamos quase lá", por seu próprio advogado, via mensagens de voz, que escapava às escondidas com um malote considerável das indenizações de todos, dela e de seus sócios da causa coletiva. O processo havia sido concluído, porém dado como se estivesse ainda a correr como até então correu, sem termino definido, previsões em cima de previsões. Só foi preso agora, recente, algum tempinho considerável depois do ato indevido, já que tentou persuadir a nossa letárgica Justiça disso, de sua falta de tino, que não, não foi arquitetado plano malévolo de arrancar de quem já nem tem, mas apenas um incidente com que provavelmente gastara o meio milhão de reais de precatórios, dando um sumiço às cédulas; o dinheiro furtado é que não apareceu até hoje, ao que se sabe. Quando Carlinhos ficou a par de tudo, foi quem primeiro mostrou fibra diante daquela aparente danação, consolando a mãe; acostumado, dado sua falta e prejuízo não muito recentes. Em compensação ao esquecimento da mãe do Trading, ainda muito bem vívido e mordaz na alma escrupulosa do filho, por que ele não sofrera, revelo, não só uma, nem duas, porém tantas e tantas, até que, na vez funesta, uma em meio a todos os pensamentos, intrusos e autodepreciativos, viera enfim um pesadelo o suficiente para fatigar-lhe as pernas das faculdades mentais. Muitas; porém finitas. Reagia positivamente a sempre sobreviver às investidas, e não se pendurar, estrangular, por força da tentação com um cinto, como de fato pensou em fazer-se consigo na primeira vez, na segunda, na terceira, na centésima sétima. Passaram ambos, mãe e filho, não sem esforço por esta fase, é verdade. Carlinhos quem começou com brio e fortaleza, passou a se render depois de ver um de seus baluartes destruído pelo inimigo; a mãe, “se não é para acontecer, não é”, confortava o filho, pensando que sua tristeza recente só vinha relacionada ao problema recente. Carlinhos admoestava-se a cada dia, a cada noite, — desde sempre, aterrorizado pela insônia e ansiedade —, cada vez mais, pesado e severo consigo, por haver perdido aquela quantia em dinheiro; se é verdade que todos cuja importância na vida deste homem atesta-se, o perdoaram, incluindo deste o primeiro momento a adorável mãe, parecia não se perdoar a si próprio ele mesmo. Mas, enfim; passaram, com inquestionável sucesso, por esta fase do advogado vigarista, a labores pelo melhor e sempre, ambos. O problemão mesmo viria a seguir, alguns pouco anos à frente; Carlinhos perdeu, sim, mais um dinheiro, não um dinheirão como dantes, ainda assim mais do que somente alguns algarismos aglutinados, e não falo do smartphone.

Mais velho do mais velho, quando contava trinta e três anos, foi morto a disparos quilômetros de sua casa, bairro, comunidade, tarde da noite, — ou antes no começo da manhã do outro dia —, no Flamengo, enquanto pegava dum ônibus para voltar à Tijuca. Fora ao Aterro do Flamengo com amigos da sua mais íntima estirpe, às seis horas, comecinho da noite, a passeio, naquele dia de réveillon. Foi roubado junto a outros e aos amigos, em um roubo coletivo, mais ou menos organizado, onde alguns dos passageiros eram na verdade parte integrante do ato criminoso, grande parte; diz-se das poucas testemunhas, incluindo os amigos, ter dado o celular logo que o criminoso assim lho ordenara, mas por algo que segundo o bandido ainda faltava, foi levado a óbito quando do bolso tirou uma notinha já com a testa no revólver. Uma nota de cinquenta reais. Depois de haver entregado o celular, diz-se ter Carlinhos dito ao ladrão que já não tinha mais nada para entregar-lhe, enquanto obedecia a todas as requisições e pesquisava vorazmente, inclinado e visão baixa, aturdido e ameaçado, embora não se demonstrasse desarrazoado, mas com inquestionável medo, em todos os bolsos que, como não usasse nada além de uma camiseta básica por cima e nem sequer mochila, porventura estivessem costurados em sua bermuda, fito no comecinho de cédula que começava aventar por entre os dedos polegar e índice. Esteve entre a faixa de altura da cintura do bandido. Num átimo, ficava estirado lá por um tempo; alguns minutos. Após o disparo e único, os criminosos evadiram rapidamente ônibus para fora, e alguns deles até hoje não se sabe se foram presos ou mesmo se ainda vivem. É provável que se tenham abrigado em suas comunidades da onde descendiam. Agora, afligido, pressionado e estapeado a cada segundo, cano na testa, coronhada na moleira, Carlinhos enquanto estava sentado em um dos bancos, ao ser atingido em cheio na cabeça, teria instantaneamente apagado, levando o corpo a beijar o chão do ônibus; por isso é que foi encontrado nesta posição, deitado de bruços. São o fado e fortuna cuja forma se nos desdobra através dos fatos apresentados, que desembocam na morte de Carlos, já tão cedo, novo o bastante para chamarem-lhe ‘moço’, por hediondo elemento.

Capturado e identificado pouco depois, — a súcia se havia dispersado, e este foi um dos quais levou azar —, proferira o seguinte: “não tinha? Foi mandar o papo torto... matei mesmo", às câmeras e aos repórteres, o que mudou em seu depoimento no juízo quando inquerido por um dos promotores da suficiência do celular, "não queria matar ele”, retificava, “escorreguei o dedo enquanto pedia para que me desse o celular”, mas que ainda na delegacia, momento inédito após ser preso em flagrante, “um playboy igual a ele? Tinha cinquenta reais que não me deu; queria me passar a perna. Passei ele primeiro. Sou sujeito homem. Mas foi mandar para cima de mim o caô...”, respondera, sentado, algemado, cabeça levantada e aprumado, de frente para o delegado, cuja precisa loquacidade fez com que o preso se sentisse confortável a pensar que estava dirigindo a palavra a alguém que, condescendido, o conhecia e esse seu banditismo. Claro que não nessa linguagem, ainda que ruim, comportada, disposta, imagina-se que a pronúncia e entonação estejam corretas e sejam de gente decente, ainda que com a má escolha das palavras; o linguajar que usou é até quase incompreensível a nós, habitantes deste nosso Rio de Janeiro, mas as ponho aí da melhor forma que possa ser entendida facilmente pelos quatro cantos do vastíssimo Brasil, e pelos que além-mar queiram se arriscar. O mesmo servia para o delegado que precisava ganhar confiança. Aliás, por uma ameaça que teria feito ao juiz lá em sua audiência de custódia, ficou preso preventivamente até o desfecho de todo o processo. Já o magistrado não tinha a capacidade de desconversar, apenas de se acovardar ante “iminente perigo à sociedade e a ordem pública”, e duvido muito que teria tomado tamanha decisão se apenas se baseasse nas declarações de interrogatório, no clarividente perfil antissocial do réu, exceto se este o envolvesse pessoalmente. Agora, sou eu quem retifica: por um celular e uma notinha de cinquenta reais, é que matou. A nota... Esta que seria o motivo para ceifar uma vida, e não a demora com que Carlinhos parecia revirar-se todo às ordens agitadas e truculentas do latrocida, se perdeu, muito provavelmente, no tempo-espaço dos bens e serviços. De acordo com ele, logo antes de ser condenado a quinze anos de reclusão pela sentença, apesar de cheíssima de considerações e recursos retóricos que pudessem ainda mais abrandar sua pena, inquerido por jornalistas do dinheiro ao adentrar algemado e escoltado pela entrada principal de onde lhe seria decidido o destino uma última, disse às câmeras em meio a rumores e empurrões, "eu comprei uma cervejinha", a mostrar culpa, reato e tanto mais arrependimento por seus atos, aos espectadores de casa tanto quanto aos de plantão. Todavia, não entrou nos autos. Presumo, todos invariavelmente chocados até onde pode ir a vilania e degeneração humana, mas nenhum minimamente admirado como que por espanto do novo, não; aquilo era velharia e de normalidade pegou. Tão normalidade que mesmo depois de haver passado alguns dias do primeiro alvoroço, alguns outros da captura e potencial desfecho do réu, depois de sua audiência de custódia e que até então aguardava julgamento, a reação predominante, sempre antecedida por um singelo silêncio de pêsames que deve ter durado nas vezes menos de vinte segundos, presumo que tenha sido todos invariavelmente dizendo a mesmice sobre caso ‘Carlinhos’, o mesmo palavreado de costume quando se está amedrontado por dentro; se antes o singelo silêncio era num tom pesaroso e soturno, agora com uma nota estridente e nervosa ressaltando que “é; o Rio não é para amadores”, finalizado por algum rifão. Famoso: “rir para não chorar”; máxima de utilidade pública para todos nós cariocas, mesmo que por algum motivo infeliz não a saibamos mais, assim, por extenso, como recitá-la ou escrevê-la, por não a vermos impressa em nossas memórias, cariocas que somos sempre teremos o seu sentido estoico porém como parte estrutural do nosso ser. Quando não a romantização, então o conformismo; conclui-se. Já os familiares da vítima é que nunca descontrairão sobre o assunto; nem o mais mal feito dos amarelos sorrisos irão estampar em seus rostos, — aquele que não deixa escapar um riso e os dentes —, apenas para que se possa enganar a tristeza e a impotência.  Além do mais, a defesa conseguira persuadir, apesar das inúmeras inconsistências materiais, o juiz a concluir que o réu não queria disparar na vítima a não ser por um acidente infausto, admitindo-se-lhe no suposto âmbito do latrocínio o homicídio, a modalidade culposa em vez da dolosa. Pena abrandada. Livrou-se de vinte a trinta anos. E ainda não menciono as outras ninharias que o fizeram sair de dezoito para quinze; quando muito, conto que, sim, suspeito que não cumprirá nem metade do cárcere sem que o vejamos às ruas, novamente.

Posso dizer que, a partir daí, Carlinhos, depois de assassinado, não conta mais nada. Nenhum comentário. E agora o leitor pode parar e pensar: "ora! é evidente que não, seu maluco; maluco preconceituoso; de que tanto já ouvimos falar em pessimismos e xenofobia contra nosso povo, cariocas, cartão-postal de todo o Brasil". Ainda que algumas partes muito bem conservadas desta nossa cidade maravilhosa possa ser atrativo ao desmiolado turismo, o carioca em si jamais o seria; no fundo, entendo o que quis dizer, espantalho meu, e possivelmente mais alguém que pense alienadamente assim. Tem toda razão, leitor; exceto quando se trata da xenofobia, porque um carioca jamais descordaria de outro carioca quando algum deles diz ser ruim o lugar onde vivem ou viveram. Já passar a viver aqui é que nunca entra no assunto. Advirto que Carlos o fazia desde o princípio, tal contato, jamais presencialmente, senão através dum diário que sua mãe me confiou humildemente. Muito colhi também de sua própria mãe; também me baseei em depoimentos que, em geral, são de pessoas que conviveram com ele. Não há, porém, conteúdo póstumo tal como há acerca de Brás Cubas; este é defunto autor do que autor defunto. Não escrevo ficção; Carlinhos escreveu tudo quando vivo, quando respirando. Portanto, sinto dizer que jamais veremos suas impressões pós-morte do além-túmulo.

Estamos em dois mil e trinta e oito, pouco mais de um ano depois do caso ‘Carlinhos’, conquanto já se tenha todos esquecido por um efeito de suas memórias curtas. Foi um caso que até deu uma repercussão, mobilizando o país e trazendo alguns de volta para a realidade, porém já não sobrevivendo ao teste de alguns meses. O que esperar de um povo que na melhor das hipóteses só lê as manchetes das notícias? Embora dado meus esforços não seja uma garantia de que não lerão tão somente a manchete desta vez, era preciso algum incentivo; de novo e de novo. Também devo cumprir minhas palavras.

Ao ler suas páginas, antes de eventualmente falecer, observei que muito do tempo previsível antes disso contava pouco de importância a que viesse ser publicado, e nem mesmo creio que Carlinhos, o próprio, apoiaria a publicação de banalidades como que aos montes se encontra registrado em seu diário. Nada de romance biográfico por aqui. Um rapaz com o hábito de escrever todos os dias desde os seus vinte e cinco, com uma ótima prosa, mas nem sempre sobre coisas sérias que desvelassem a sua própria história, enfunaria mais do que informaria. O essencial e sua síntese, que aí está, como prometido à sua mãe por minha parte; em que jornal onde tenho coluna, aqui está.