—
Não se preocupe, meu amor — dizia Mateus, incrédulo. — Faremos as coisas
progredir.
—
Estou cansada de suas conversas, garoto. Está acabado.
Mateus
ainda insistiu; palavras jogadas ao vento, não obstante. Joana estava decidida.
Onze horas da noite, automóveis passando, rumores característicos e suburbanos
—, fechou-lhe a entrada, na cara, tanto para sua vida quanto para seu domicílio,
conjecturando insensivelmente se retirar, de uma vez por todas; na véspera
conhecera os sogros, e os pequenos sinais de indisposição com que Joana
aparentava empurrar aquela relação, depois do jantar.
—
Desencosta, Mateus! — gritou Joana, enquanto todos, no sofá, assistiam ao streaming
na TV. A Noite dos Mortos-Vivos. O casal no meio dos velhos. — Eu, hein.
—
Calma, querida — com um aceno molenga, conformara-se; Mateus sentou-se no chão.
Estes
sinais cresceram exponencialmente e atingiram um platô, suficiente para ser o
cume, donde como saída só haveria se em forma de queda livre. Abatido, Mateus fitava
pela última vez aqueles olhos inquietos, castanhos, a testa enrugada, o
sobrolho franzido, virada de costas, imaginava o cachaço fininho, escondido por
uma cabeleira volumosa, solta, lisa e escura, tingida de um preto azulado; agora
cabisbaixo, um derrotado, o olhar metia-se para o chão encardido, cheio de
bitucas de cigarro, cheio de história, com que presumivelmente se podia resumir
em alguns minutos, subdividindo-se em baforadas por segundo. Talvez um termino
de relacionamento fosse o primeiro a dar-se por ali. A chuva renitente começava
por engrossar, e cada chuvisco miúdo serviu para iniciar com que pouco dali
estariam enxarcadas as vestes do rapaz. Em uma das mãos, segurava firme,
apertado, um bouquet de rosas, cujas flores, uma ou duas, caíram
naquele chão, misturando-se ao algodão, tabaco e cinzas, além das pequenas
porções de areia que se enlameavam, numa coalhada mais líquida; na
outra, sempre com as unhas aparadas e limpas, brunidas, tentava a todo custo por
inconsciente da sua ação, furar a própria carne da palma, fechando o punho. Joana,
vestia não mais que um vestido simples cujas mangas fechadas estendiam-se até
os cotovelos pontiagudos, e a bainha ia até as canelas descarnadas e compridas
—, estava toda arrepiada, a pele dos antebraços cheia de carocinhos; subia até
a casa com os braços cruzados, apertando-se, tensionando o espinhaço. Mateus jeans,
camisa de meia básica e um casaco.
—
Joana! — exclamou. — Por favor; espere. Vamos conversar.
Sua
resposta foi o silêncio. A moça já havia trancado o portão gradeado, batido o
cadeado e, subindo aqueles pequenos degrauzinhos de uma casa suspensa por
alicerces altos, se retirado para dentro. No entanto, só o rumor da fechadura
foi o estopim para que, frustrado, consternado —, Mateus deixasse a inércia com
que fitava fixamente a porta, e atirasse com as duas mãos rígidas, o gesto rijo
acompanhado, de cima a baixo, o bouquet na caçamba de lixo adjacente, cheia
de entulho, e, só de raiva, arrematando com que pisou naquelas poucas flores que
haviam destroncado, indo-se embora. Alguns transeuntes, do outro lado da
calçada, guarda-chuvas apostos, curiosos e admirados, observam boquiabertos,
desde o início, a dr.
—
Ó lá, briga de casal — fuxicavam. — A coisa vai braba.
—
É; terminaram.
Foram
longas as horas com que imbuído a lamúrias e lamentações, à carraspana —,
perdera seu mais corrido tempo no boteco da esquina. “Sem fumo”, disseram,
quando Mateus tomava do maço que carregava consigo um cigarro, tentando
acendê-lo ali mesmo no balcão, com os cotovelos pregados. Mateus entre cada
copo de aguardente, levantava-se do tamborete, saía de dentro para pitar, lá
fora. Entre cada ida e vinda, pegava do seu celular para ligar para Joana, e
tentar por reatar o relacionamento, assim, remotamente —, que Joana a chamadas
recusou, uma por uma; e que recusaria dali em diante todo meio comunicativo
empregado por Mateus. Já era meia-noite e meia, e Mateus foi finalmente bloqueado
no Whatsapp, também seu número telefônico, de maneira que não pudesse se contactar
sem artifício da web. Os autos reduzidos contíguo à praça Fernando Amaro —
Centro Histórico —, os poucos majoritariamente estacionados, ou então ausentes
e recolhidos; os característicos rumores suburbanos haviam cessado em sua
grande maioria, reduzidos a grunhidos de bichos: latidos de cães e miados de gatos
no cio. O chuvisco havia engrossado em chuva consumada depois que saiu da
fachada da casa da ex, e Mateus, quando a mágoa apelava à nicotina, deixava o
copo de cachaça pela metade lá no balcão, algum azinhavre de níqueis, e vinha
para ali, debaixo do toldo do estabelecimento. Quando voltava, o dinheiro
recolhido e o copo vazio; Mateus mal reparava nesse último, a não ser para repetir
a rodada pensado haver tomado tudo.
—
Vai enchendo, seu botequeiro — chamou ao senhor atendente.
—
Pra já!
Um ano e meio de namoro, obedecendo a indispensável regra de conhecer antes as imperfeições do que as qualidades da futura noiva, para que então depois pudesse efetivamente amarrar-se no casório com ela; acabado ali; sem possibilidade de recurso. O gênio da moça não deixava. E Mateus estava desempregado, pela terceira consecutiva; não por incompetência ou alguma outra falta sua, nem pelo corte de gastos da gestão, mas por escolha: havia se demitido da nobre tarefa de encher os tanques da população, como frentista de posto, a pouco mais de quatro semanas, e cumprira até então o aviso-prévio não vendo a hora da rescisão. Guardara esta nova para si, tardando em contá-la à namorada. Mas a notícia, como se vê, não foi bem-recebida. Ademais, cronologicamente vinha de outro relacionamento igualmente fracassado, e naquela época, depois do término, aprendera esta conduta com alguém que desconhecia completamente, a não ser aquilo que o tipo deixava que os outros conhecessem, em algum canto da internet. Rede social? Não importa. Desta vez o ensinamento estava correto, e condizia com seus princípios. Por não tê-lo apressado num excesso de confiança cega, ganhou de positivo deste recente, infeliz evento do Cupido, acérrima quebra de expectativa pela personificação contrária. Mas verdadeira. A moça não o seguiria em sua mais nova empreitada. Ela estava cansada e precisava de alguém mais estável, decidido; como ela. Incompatíveis. Com isso, você veja, primeiro Mateus ganhou o livramento, tanto do pecado contra o sexto mandamento que cansava em fugir de suas ocasiões junto à moça, outrora, em tempos áureos, bem grudenta, quanto da paz de espírito escassa posto houvesse continuado com a boca fechada, dissimulando como uma menininha; e, de bônus, todo escamado, uma ressaca baita com que no dia seguinte teve de logo cedo acordar para trabalhar no novo emprego, como já o houvesse encontrado. Diária; servente de obras.