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Lá em Brasília

Lá em Brasília, cujo projeto cabuloso por um juízo decadente tem como efeito um “banheiro em formato de avião pra abrigar o burocrata”, como diz a boa música popular; lá na fronte do Supremo do décimo sétimo universo — onde a esquerda reascende ao poder ajudada pelo TSE —, o ministro mais proeminente, parcialmente coberto pelo alpendre brutalista, futurista-iconoclasta de Oscar Niemeyer, diferente dos seus fantoches semelhantes sobretudo na toga, contestava uma manifestação em sinal de protesto regrada de acampamento e mordaça, segundo Sua Excelência, inconstitucional, na praça pública dos Três Poderes.

— Ministro, é um direito constitucional nosso, do povo, de nos manifestar pacificamente. Ainda agora mais silenciosamente. Muito diferente de quando, enraivecidos, algum punhado menos paciente com a injustiça fez uma baderna danada por aqui, soltando aquele barroso na vossa ilustre mesa. Um incidente, convenhamos. E quanto ao relógio de Dom João VI, a maioria escolheu república no plesbicito de noventa e três. Todos enraivecidos, digo, pelo fato de ter voltado o criminoso do atual presidente, mais uma vez, à cena do crime, qual o inocente. O senhor sabe que o povo brasileiro e de bem detesta uma injustiça, e esta, sabendo que os tucanos sempre foram a direita permitida, já vem durando mínimo quase duas...

— Deputado, deputado — interrompeu o ministro —, não se eu puder impedir; deputado. E posso. E peço encarecidamente que controle o linguajar, porque posso enquadrá-lo como o juiz, ministro da suprema corte, relator, investigador, promotor, inquisidor, imperador, no inquérito das Fake News. São golpistas e não vândalos, deputado.

Parte da careca lisa reluzia em meio ao sol forte do planalto, as olheiras saltavam-lhe das pálpebras inferiores, sombrosas junto a metade de face; os olhos imóveis, arregalados; planejava desde há muito de aquela discussão antidemocrática, aprisionar na Papuda até a alma daquele deputado.

— Ao meu ver, pareceu e muito mais análogo com os antigos black blocs, atos isolados, num espírito autônomo de revolta e insubordinação coletiva... Mas golpe de Estado, ministro?

— Deputado, deputado, não vou ter de avisá-lo novamente, deputado.

— Mas, ministro, está na lei. E isto aqui é uma praça pública, temos o direto de estar aqui...

— Está, deputado. Porém não está como subterfúgio para que defendam o indefensável como é o caso de manifestações como esta, latente em atentar contra o Estado Democrático de Direito, contra a democracia. Contra as instituições. Contra os ministros do Supremo. A lei e a ordem.

— Mas, ministro, o senhor é a lei, por acaso? Pois parece mudá-las e recriá-las com pouca força do vosso ilustre polegar e índice, sobre a vossa ilustre caneta, o que levaria semanas, meses de empenho o mesmo feito pelo Congresso. E se sois uma das vítimas, por que julgais?

— É a terceira vez, deputado; não me alongarei pela quarta. Como membro do Supremo Tribunal Federal, junto aos meus coautores e irmãos de colegiado, sou o intérprete máximo da lei; da constituição; e da ordem.

— Faz a lei do senhor, ministro. A maioria não tinha foro privilegiado.

— Engano seu, deputado. Deputado, deputado, precisamente da constituição a minha lei e a de todos nós, deputado. E hoje não é mais necessário foro para ser julgado automaticamente pelas instâncias superiores, sobretudo por esta primeira turma, basta que se enquadre em algum inquérito que abrirmos. E voilà! Hoje, deputado, prevalece a mais perfeita igualdade entre os cidadãos, a democracia em seu estado mais puro sob a garantia da constituição de oitenta e oito. Dito isto, convocarei encarecidamente que a Polícia Federal o investigue, por suspeita de atentar violentamente contra a democracia e a soberania do Brasil, antes que o retirem à força daqui.

O cão do governo havia sido mencionado. O deputado, para não ser preso ali, imediatamente, resolveu acatar a ordem velada em tom de conselho paterno, que dali a pouco seria judicialmente constitucional. O mandamento do ministro válido para as próximas horas, dias, meses, anos: “não acamparás num raio de mil metros da Praça dos Três Poderes”. Finda a violência, o ministro não pôde conter aquele seu risinho característico. Herói triunfante da democracia, olhos vidrados, olheiras apostas, e se sentindo obrigado a agradar os seus fãs... alguns passinhos adiante deixando ver sol todo o corpo na beca, descera levemente o cocuruto radiante, olhar fixo, espremendo a papada espessa do pescoço adiposo contra o colarinho apertado da camisa de seda, com as mãos tremulava a bainha da capa nas suas extremidades vampíricas, alargando um sorriso de orelha a orelha, mostrando os caninos. A aparência, pitoresca, cuja consecução adquiriu no tempo em que passara às andanças com o conde Temer, desbravando segredos cibernéticos pelo preço certo. A plateia: não mais que aqueles que por cuja constituição do Supremo e as suas quatro linhas se retiravam, agora, pacificamente, dando as costas ao ministro, incluindo o deputado, carregando as barracas e os esparadrapos.

Dendro do tribunal, outro colegiado do Supremo também da primeira turma, chamara a atenção a seu Alexandre para o julgamento mais aguardado e menos postergado daquela casa de orates até então, que ecoava e soturno chegou até os ouvidos do ministro.

— É chegada a hora, senhor.

— Então vamos.

Seu nome era Hannibal Zanin, o devorador de cérebros — em troca dos habeas corpus.